sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

Restos

Ela era garçonete. Ela era mãe.
Ela foi menina. Ela foi só esperança.
Ela já serviu para outro tipo de coisa.
Ela já foi outra pessoa.
E foi cozinhando, anotando pedidos e servindo outros tipos de pessoas que ela sentia seu estômago doer. E olha que não era uma dor qualquer. Era um dor que vinha como uma coceirinha que começava a esquentar e parava. E começava mais intensa e incômoda e parava.E começava e parava. E começava e parava, até ela ficar extremamente irritada.
- Deve ser úlcera, gastrite... come alguma coisinha menina! Dizia o patrão cada vez que a moça se queixava.
Ela, a garçonete, não pensava em outra coisa. Passava a mão em uma migalha de pão e enfiava na boca. Era um alívio! Minutos depois a dor voltava.
- Come alguma coisa mulher! Dizia o patrão.
Ela, que era mãe, sabia que com a fome não se brincava. Então, passava a mão em uma ou duas batatinhas fritas, enfiava na boca e comia. Mas não estava com fome. Era um alívio... um meio alívio. E a dor começava outra vez e ela comia. E não estava com fome. E comia. E vinha a dor e o patrão dizia:
- Come minha filha, come!
Ela, que já tinha servido para outro tipo de coisa, comia e comia e comia. E não é que a bendita dor não passava!
Ela, que já foi outra pessoa, se olhava no espelho e o espelho olhava para ela. E o que via? Via que estava gorda, mas gorda, muito gorda. Estava nutrida, rechonchuda, entupida, untuosa... Na verdade estava cheia... muito cheia.
Ela, que foi só esperança, ainda sentia bem lá no fundo, bem além da dor, um vazio. Um vazio inexplicável na alma.
E a dor? A dor continuava a ser sentida do mesmo jeito.